terça-feira, 20 de outubro de 2015

Sobre a copa IIDidier Dogbá,um nome é muita coisa


Ontem, durante o jogo Japão x Costa do Marfim, aconteceu o inesperado.
O Japão dominava a partida e vencia por 1 a 0.
A Costa atacava sem parar — mas nada.
A força e a resistência estavam lá, visíveis em músculos esculpidos com precisão quase divina.
Mas não bastava.
Não bastava pra virar o jogo.

E então aconteceu o milagre.
Não foi tático, foi simbólico.

A virada começou quando um nome foi dito:
Didier Drogba.

O nome entrou em campo — e o jogo mudou de esfera.
Parecia que a realidade, de repente, obedecia ao desejo.

A torcida, antes tímida, virou a casaca sem culpa.
Gritava, delirava.
Não torcia mais só por um time —
torcia pelo mito.

A postura dos jogadores mudou também:
cabeças erguidas, passes firmes, olhos atentos ao companheiro.
O campo, antes espaço de força, virou território de fé.

Ontem, Drogba não foi convocado.
Foi evocado.

Como quando evocamos uma palavra na esperança de que o nosso desejo se realize.

E foi.

Enquanto via o jogo, lembrei de uma psicanalista que um dia me disse:

> “Um nome nunca é só isso.
Um nome já é muita coisa.”



Se é!

Durante a copa do mundo I

Na última quinta, adiantamos o ensaio da banda, aproveitando o feriado pra deixar o domingo livre.
Aqui em casa, todos tinham saído: os filhos mais velhos foram pra casa do pai, o companheiro aproveitou pra fazer hora extra, e eu fui trabalhar também — porque artista, sim, trabalha pra burro.
Fui com meu pequeno de quatro anos.

Na ida, pegamos o metrô — a linha vermelha — lotado de torcedores ingleses.
Felizes, barulhentos, batendo no teto do vagão, bebendo, gritando, naquela algazarra alegre de quem faz da torcida um carnaval.

Meu pequeno me olhava, intrigado.
— “Mãe, por que eles falam desse jeito?”
Expliquei:
— “É a língua deles. Eles falam inglês, moram em outro país.”
Um dos estrangeiros percebeu a curiosidade do menino, sorriu e passou a mão com carinho em seus cabelos.

Descemos em Santa Cecília.
Ensaio feito, tudo lindo.

Na volta, cruzamos com a torcida do Uruguai — ainda mais feliz que a da Inglaterra.
Voltavam do jogo com o peito estufado de vitória.
Usavam perucas azuis e brancas, bandeiras enroladas no corpo, riam, dançavam, saudavam todos ao redor.

Meu pequeno quis saber de novo:
— “Mãe, quem são eles?”
Respondi:
— “São uruguaios. Eles falam espanhol.”

Ele sorriu, deu tchauzinhos, e muitos retribuíram.
Até aí, tudo bem. Tudo normal.

Mas então um brasileiro, dentro do vagão, me chamou a atenção.
Olhou pra mim, pra viola nas costas, e gritou alto:
— “Quero ver se toca violão!”

Possivelmente era a primeira vez que esse homem andava de metrô.
E olha, espero que tenha gostado.
Mas percebi que, pra ele, artista não pega metrô.
Artista, pra ele, é outra coisa — alguém intocável, cercado de seguranças, distante do real.
A arte, na cabeça dele, deve morar em palcos caros e telas de TV, nunca num vagão apertado com cheiro de cerveja e humanidade.

Um outro passageiro, mais gentil, perguntou ao meu pequeno qual era o instrumento que ele carregava.
E ele, orgulhoso, respondeu:
— “É uma escaleta.”
O homem sorriu, olhou pra mim e perguntou:
— “E o seu, é violão?”
— “Não”, respondi. “É uma viola caipira.”
Ele sorriu de novo.

Hoje, um amigo escreveu nas redes:

> “Não há nada mais pacífico do que uma pessoa carregando um instrumento musical.”



E eu fiquei pensando: pacífico pra quem?

Espero sinceramente que pra todos nós.
Espero que o artista e a arte não sejam vistos como algo fora do real,
mas como parte do que somos —
em qualquer lugar, em qualquer língua,
em qualquer estação de metrô.

Que se respeite a arte não só nos gols da vida,
mas também nas derrotas, nas dores, nas lutas, nas angústias
e no gozo nosso de cada dia.

Preciso gritar gol!

Eu preciso gritar GOL!

Preciso gritar gol quando é Copa do Mundo
e vejo em campo a luta de tantos povos.

Preciso gritar gol
porque passo a semana inteira enterrada
nos problemas da comunidade —
gente que vive uma realidade dura,
tão dura quanto a minha.

Preciso gritar gol.
É meu momento de catarse.
E não é só o meu.

É o grito de tanta gente.
O grito de tantos discursos.
O grito do povo oprimido na favela —
e de outros mais.

É o grito dos discursantes do busão,
que às vezes, pra minha tristeza,
discursam como “coxinhas”.

E isso me assusta.
Porque não há nada mais triste
do que um discurso-coxinha
ecoando dentro do ônibus,
no beco da favela.

Ser coxinha hoje
não é mais demérito da classe média.
É uma contaminação.

E eu me pergunto:
o que leva essas pessoas a acreditarem na mídia?
Essa mídia frágil, televisiva, manipuladora —
que vende uma ideia de realidade
embalada em luzes e slogans.

Pode ser romantismo,
mas penso que se cada um refletisse sobre o que vive,
sobre o que passa dentro e fora de si,
as relações seriam outras.

Com menos preconceito,
menos medo,
menos rótulos —
e mais humanidade.

Porque até quando fala de preconceito,
a mídia tenta enfiar outro goela abaixo.
E a gente engole.
Todos nós.

Eu fico feliz
quando vejo um amigo gritar nas redes:

> Vai, Argélia!
Vai, Costa Rica!
Dale, Uruguai!
Vai, Costa do Marfim!
Gana!



Porque sei que estão dizendo muito mais do que isso.
Desejam muito mais do que gol.
Desejam justiça social.
Desejam igualdade.
Desejam respeito.
Desejam o fim da opressão.

É só por isso que eu grito GOL!

Primeiro dia de aula

Ainda trago muito claro na memória o meu primeiro dia de escola.
Era a primeira série.
O nome da professora era Ariane.

Eu observava, com um olhar tímido e curioso, meus futuros colegas e todo aquele novo mundo cheio de cores e barulhos.

Sobre as mesas, as lancheiras mais escalafobéticas que eu já tinha visto.
Estojos multicoloridos.
De dentro deles saíam lápis, borrachas, apontadores —
objetos pequenos, coloridos, mágicos.
Tudo me parecia um tesouro.

A certa altura, a professora começou a chamar os nomes dos alunos:

— Fulano de tal!
— Presente! — respondia o fulano.

E assim ela seguia, um por um.

Eu comecei a ficar angustiada.
A qualquer momento, podia chegar a minha vez.

E chegou.

— Rosana!

Uma, duas, três vezes ela chamou.
E eu, quieta, pensando comigo:

> “E agora? O que eu faço?”



Ela olhou pra sala e perguntou:

— Quem é Rosana?

E eu, sem muita alternativa, respondi:

— Sou eu!

— E por que você não diz ‘presente’? — ela perguntou.

E eu, com toda sinceridade do mundo:

— Porque eu não trouxe!

Na minha cabeça, todos aqueles objetos que as crianças traziam —
as lancheiras, os estojos, os lápis —
eram presentes pra professora.

Ela sorriu com doçura e me explicou o que realmente significava dizer “presente”.
Fiquei aliviada.
Aprendi.

E aprendi também que a vida é isso:
todo dia é um novo primeiro dia de aula.
Todo dia dá pra aprender algo —
uma palavra, uma música, um gesto,
ou encontrar um novo amigo.

A vida está aí,
cheia de encantamentos,
o tempo todo.

E eu só quis contar pra vocês. 🌷

segunda-feira, 19 de outubro de 2015

O episódio da máquina de lavar, a linguagem.

Após cinco anos funcionando em perfeito estado, minha máquina de lavar — comprada com uma vaquinha-à-prestação feita pela minha mãe, minha avó e meu pai — resolveu dar problema.

Há dois dias, me deparei com um cartão de visitas sobre o armário da cozinha, escrito:

> “Conserto de máquinas de lavar.”



Achei que fosse de algum conhecido do meu companheiro, ou talvez alguém tivesse deixado o cartão sob a porta e outro alguém, gentilmente, o colocara sobre o armário.

Resolvi não jogar fora — ainda.
Guardei num cantinho.
Aquele cantinho que, de pouco em pouco, toma conta do armário em pouquíssimo tempo.
Era só questão de tempo o cartão ir pro lixo...

Acontece que hoje, dois dias depois de encontrar o tal cartão, a máquina decidiu não funcionar.

Coloquei a roupa da semana toda — nesses tempos difíceis a gente só lava quando é estritamente necessário.
Coloquei sabão, amaciante, tudo certinho.
Liguei.
E nada!

A luz acendia, mas a água não entrava.
Fiz de tudo: abri e fechei mil vezes, dei umas porradas, tirei da tomada, religuei a torneira... nada.

Foi quando me lembrei do tal cartão misterioso — e aí bateu a paranoia!
Comecei a confabular que aquele cartão era de um sujeito que tinha entrado em casa, sabotado minha máquina e deixado o cartão como provocação.
Olha o nível da nóia!

Respirei fundo, recuperei um pouco de sanidade e decidi ligar para o “sabotador de máquinas de lavar alheias”.

— Sr. Fulano? Encontrei seu cartão aqui em casa, não sei como ele veio parar aqui... enfim, minha máquina quebrou. Está assim, assim, assado.

Ele respondeu, calmo:
— Hum... entendi. Mas tá saindo água?

— Não! A luz acende, mas a água não vem pra máquina.

— Hummm, entendi... me passa seu endereço.

Achei que ele fosse vir só no dia seguinte, ou na segunda-feira — tipo os técnicos de computador, que vêm só quando podem.

Mas não deu cinco minutos e o homem já estava na porta.
Aqui é quebrada — e na quebrada é assim!
(Isso, claro, não vale pros técnicos de computador.)

Ele entrou, olhou a máquina cheia de roupa, e eu — agoniada — atrás dele, tentando entender o problema quase junto com ele.
O desespero era grande.
Mas grande mesmo!

Na minha cabeça, passava um filme: eu lavando roupa de cinco pessoas na mão, sabão até o cotovelo, a vida desabando.
Era quase mais enlouquecedor que a própria paranoia.

Então o homem resolveu arrastar a máquina.
E eu, na maior inocência — misturada com desespero — soltei, sem pensar:

> — Moço, precisa tirar a roupa? Se precisar, eu tiro!



Chorei de rir por dentro.
Com a minha bobiça de linguagem.

quinta-feira, 15 de outubro de 2015

Poema engavetado

Fome de quê
guardam teus úmidos lábios morenos?

Que vontades tua pele carrega
sob essa camisa?

No teu corpo
faço língua
meu desejo-fome.

O olhar que mira —
como quem mira estrelas —
desperta-me a sede.

Quero chuva.