sexta-feira, 24 de junho de 2016

Cuia

🕯️ “Dizem que os cachorros nos levarão água na cuia de suas cabeças quando morrermos.”
Frase dita por minha avó)

Naquela tarde, se eu pudesse, em vez de enterrar o cão envenenado, teria enterrado a mim mesma — pra não sentir a dor que se sente quando a humilhação chega ao limite da alma.

Por circunstâncias da vida e do avanço urbano, fui desapropriada da minha antiga casa.
Era simples na construção, mas farta em vida: horta, frutas, peixes e bicho.
Ali meus filhos deram os primeiros passos — livres, como os pés de hortelã rasteiros pelo chão.
Aprenderam a nadar antes de ler, porque o quintal era margem de represa.

O deslocamento foi brutal.
Mudou o espaço, o corpo, o tempo e o ar.
Foram quatro anos até a nova casa ficar pronta — uma casa com luz, mas sem sol; com espaço, mas sem “jeito”.
Havia conforto, mas faltava alma.

Meu terceiro filho nasceu já nesse novo lugar.
E entre o puerpério e os deslocamentos, precisei trabalhar.
Aceitei o emprego de faxineira no mesmo condomínio que agora abrigava os novos retirantes — tão perdidos e desalojados quanto eu.

Ali, suportei misérias inimagináveis em troca de um salário mínimo.
Por mais que eu limpasse — com cloro, desinfetante tutti-frutti, talco, violeta, jasmim, eucalipto — o cheiro da indecência não saía.
Ficava impregnado embaixo das escadas, como cicatriz de sujeira moral.

As pessoas ainda não acostumadas à nova vida começaram a fazer suas necessidades ali mesmo, nas sombras dos prédios.
Com o tempo, aprendi a reconhecer o autor da bosta.
Sim, quando se especializa nisso, a merda vira íntima.
Dá pra diferenciar a de criança, de adulto, de cachorro e até de bêbado.
Os bêbados, esses, são sinceros: cagam onde dá, mas com uma dignidade estranha.

Quando descobri quem eram, fui até eles.
A pouca vergonha cessava por uns dias, mas voltava — às vezes líquida, às vezes misturada com raiva e urina.

Mas nada disso — nem a sujeira, nem o cheiro, nem a humilhação — me preparou pro dia em que o cão foi envenenado.

Muitos haviam abandonado seus bichos ao mudar pro condomínio dos Retirantes Confusos.
Quem não tinha escrúpulo com as próprias fezes, imagina com um cachorro.
Envenenaram o bicho e o deixaram morrer encostado no muro frio, do lado de dentro — pra que todos pudessem ver a barbaridade que haviam se tornado.

Ninguém fez nada.
Só quando o fedor ficou insuportável é que Dona Matilde, a síndica, me chamou.
Eu, “a responsável pela limpeza”.
A especialista em merda.

Mas eu não descobri quem envenenou o cão.
E Dona Matilde, dona de tudo, ordenou:

> “Enterre o bicho.”



E lá fui eu — cinquenta quilos de carne, ossos e ódio — carregar o cão, a pá, a enxada e o peso do mundo.
Cavei além do muro.
Três ou quatro me olhavam de longe, gozando o espetáculo silencioso da minha humilhação.

Cavei até o cansaço.
O sol a pino, o corpo pedindo trégua, o buraco pequeno demais pra tanta dor.

E então gritei:

> “Chega! Não consigo mais cavar!”



A plateia, embriagada, riu.
E Dona Matilde decretou:

> “Pega uns sacos de lixo e joga fora.”



E eu obedeci.
Com as mãos trêmulas e o peito rasgado, coloquei o cão nos sacos, amarrei, levei até a lixeira.

E todos voltaram pras suas vidas.
Menos eu.

Naquele dia, uma parte de mim foi junto com o cão pro lixo."

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