segunda-feira, 23 de fevereiro de 2015

O Bar do Zé Bosta!

Já falei muito sobre o poço da solidão.
Subi o bastante pra ver a vida de outro lugar — e enxergar as voltas, os tropeços e os brilhos que ela dá.

Hoje quero falar do início do meu lado artista.
Arteira. Teimosa.
Aquela que não aguenta só sentir — precisa cantar.

Depois de um tempo tocando com a banda Suave Coisa Nenhuma, veio o fim da estrada.
E, com ele, o começo de outra: um projeto só com mulheres no palco.
Nasceu o Sansaras — nome inspirado no Sidarta, de Hermann Hesse.

Eu no violão, três nos vocais e uma percussionista incrivelmente incrível.
Às vezes me perguntam por que não toco mais em bar.
Respondo com sinceridade:
trauma.

A estrada é bonita, mas cheia de feridas.

Conseguimos esse bar no centro de São Bernardo — lugar bacana, pico cheio de expectativa.
Preparamos um repertório com todo o carinho:
Chico, Caetano, Raul, Marisa Monte, Secos e Molhados, Mutantes, Elis.
Tudo o que acreditávamos ser de bom gosto, de alma viva.

E lá estávamos: quatro mulheres tocando, abrindo vozes, sentindo cada nota.
Era fino, bonito.
Mas bonito demais pro dono do bar.

Um dia, ele chegou e disse, sem cerimônia:
— Ou vocês tocam músicas mais animadas, ou eu chamo o cara do outro lado da rua.

O mesmo cara que tinha nos indicado.

Ele queria música de rádio.
Música “de vender bebida”.
Mas a gente tocava do nosso jeito.
E é difícil equilibrar demanda e desejo, não é?

Até que ele soltou a pérola:
— Se um dia eu quiser que um cara compre uma garrafa de uísque, sente no balcão e comece a chorar, eu contrato vocês de novo.

Do eu-lírico pra lágrima foi um pulo.
Doeu.
Como se arte e música boa fossem só o que toca no rádio.

Mas a gente tinha público, sim.
Os amigos fiéis, a turma que acreditava junto, sempre colava.
Até aquele dia.

O bar estava cheio, o dono distribuía doses de pinga pra todo mundo.
Um cara perguntou:
— É de graça?
E ele respondeu:
— É de graça pra quem consome!

O sujeito então comprou uma breja e dispensou a pinga grátis.
Sangue frio, pensei.
Eu, se fosse ele, teria tomado.

Nosso corre era pesado:
montar, desmontar, pedir carona, carregar aparelhagem, pagar com o cachê a gasolina e o perrengue.
Mas o amor pelo som empurrava tudo.

Até que chegou o ponto final.
Ou melhor, o zero a zero.

O dono anunciou:
— Hoje é zero a zero, meninas!

Nem um centavo.
Voltamos frustradas, cansadas, mas não vencidas.

No caminho, o motorista do busão perguntou:
— Ué, vocês não foram trabalhar?
— Fomos. Mas hoje não recebemos nada.

Ele riu, abriu a porta, e nos deu carona.
Voltamos cantando Raul Seixas,
tocando pra quem também voltava cansado,
guardando a dor no bolso e o sonho no peito.

Aprendemos — ou talvez só criamos casca.
E é por isso que, quando me perguntam por que não toco em bar,
eu digo:
porque eu trabalho com arte.
E arte, no país do tchetchereretchê e da perereca suicida,
é resistência.

Não condeno os gostos —
entendo as diferenças, os contextos, a cultura.
Mas a minha onda é outra.

Hoje faço música autoral,
mesclando literatura brasileira e latino-americana,
porque sou uma mulher latino-americana,
sem dinheiro no banco,
sem parentes importantes,
vinda de muitos cantos desse Brasil,
seguindo as estradas que meu pai abriu com as máquinas e a coragem de um operário.

Nada pra esconder.
Nada pra lamentar.
Só uma vontade imensa de lutar pela música brasileira
— até os ossos, até o fim.

E se for pra tocar em bar, que seja o bar da vida,
onde ainda se brinda com poesia.

Pra encerrar, deixo minha trilha sonora:
🎶 Vida de Artista, do mestre Itamar Assumpção.

Escuto quase todo dia.
Porque quando alguém me pergunta
como eu consigo fazer tudo — tocar, cantar, escrever, criar, ser mãe, psicóloga, pós-graduanda —
é essa música que me responde:

> “Viva o que está rolando, menina.”



Sou assim:
vivo intensamente.
E sigo.

Mais beijos,
mais música,
e mais histórias —
porque as pérolas da estrada não param de nascer. 💫

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