segunda-feira, 10 de novembro de 2025

Por um fio

 (escrito na pandemia)


Um dia acordei e me dei conta de que me tornei íntima dessa casa.


Cada pequena parte, cada parede, cada canto revelam o que eu mais temia:

me tornar parte da mobília.


É uma intimidade constrangedora.


Toda coisa fora do lugar — o rejunte pedindo cloro, a gordura grudada na poeira das partes altas da cozinha —

tudo conversa comigo, tudo pede socorro.


Acalmo os ânimos dando conta do que é possível fazer.


As roupas que estrangulei no armário riem de mim,

e eu rio de volta, sem muita esperança de ajeitar.


Tenho sapatos novos — dois pares.

Um deles uso em casa, na falta de onde ir.

Só pra enganar a parte lógica e racional,

faço charme pros meus pés ficarem enganados,

felizes de sentir que ainda podem caminhar vestidos,

sem ser com as chinelas e meias

com as quais desenvolveram uma relação profunda.


As plantas são excelentes quando se trata de expressar o desejo.

Com elas, a convivência é simples: dizem o que querem —

sol, sombra, vento, água —

e quando eu não dou conta de entender,

elas simplesmente se vão.

Sem o menor ressentimento.

Nem delas, nem meu.


Sinto medos que nunca senti antes.

Medos estranhos,

coisas sem jeito de explicar.


Tudo por um fio.


Maldita a palavra mal dita.

Na hora e no lugar errados.


Tentativas, erros, acertos, desistências, persistências —

tudo por um fio.


Trabalho on-line, diversão on-line, necessidades on-line,

reuniões on-line, aniversário on-line —

tudo on-line,

tudo por uma linha,

tudo por um fio.


Haja saúde mental, saúde emocional, saúde física —

haja saúde!


Tantos finais de semana passei bebendo na solitude,

convicta de que era redução de danos

diante de tanto buraco existencial.


Bobagem.


O vazio não se enche nunca.

Ele cresce, torna-se parte da mobília,

impregna-se nas paredes

com a força do pó com gordura.


As notícias chegam e trazem tristezas amarradas:

sangue de pobre escorrendo,

povos expulsos de suas terras,

mulheres, trabalhadoras, crianças

sofrendo com a violência do Estado.


Tudo muito brutal.

Tudo violento.

Tudo por um fio.


É um país inteiro sangrando.


É só povo segurando na mão de povo,

nas ondas de solidariedade

que também vão se esgotando.


Como tudo se esgota, por aqui,

na minha subjetividade.


A banalização do mal.

A naturalização da dor.

Do sofrimento.

Da morte.


Tudo por um fio —

numa dimens

ão que assusta

de tão natural.


Como se tudo na vida

tivesse se tornado

parte da mobília.


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