(escrito na pandemia)
Um dia acordei e me dei conta de que me tornei íntima dessa casa.
Cada pequena parte, cada parede, cada canto revelam o que eu mais temia:
me tornar parte da mobília.
É uma intimidade constrangedora.
Toda coisa fora do lugar — o rejunte pedindo cloro, a gordura grudada na poeira das partes altas da cozinha —
tudo conversa comigo, tudo pede socorro.
Acalmo os ânimos dando conta do que é possível fazer.
As roupas que estrangulei no armário riem de mim,
e eu rio de volta, sem muita esperança de ajeitar.
Tenho sapatos novos — dois pares.
Um deles uso em casa, na falta de onde ir.
Só pra enganar a parte lógica e racional,
faço charme pros meus pés ficarem enganados,
felizes de sentir que ainda podem caminhar vestidos,
sem ser com as chinelas e meias
com as quais desenvolveram uma relação profunda.
As plantas são excelentes quando se trata de expressar o desejo.
Com elas, a convivência é simples: dizem o que querem —
sol, sombra, vento, água —
e quando eu não dou conta de entender,
elas simplesmente se vão.
Sem o menor ressentimento.
Nem delas, nem meu.
Sinto medos que nunca senti antes.
Medos estranhos,
coisas sem jeito de explicar.
Tudo por um fio.
Maldita a palavra mal dita.
Na hora e no lugar errados.
Tentativas, erros, acertos, desistências, persistências —
tudo por um fio.
Trabalho on-line, diversão on-line, necessidades on-line,
reuniões on-line, aniversário on-line —
tudo on-line,
tudo por uma linha,
tudo por um fio.
Haja saúde mental, saúde emocional, saúde física —
haja saúde!
Tantos finais de semana passei bebendo na solitude,
convicta de que era redução de danos
diante de tanto buraco existencial.
Bobagem.
O vazio não se enche nunca.
Ele cresce, torna-se parte da mobília,
impregna-se nas paredes
com a força do pó com gordura.
As notícias chegam e trazem tristezas amarradas:
sangue de pobre escorrendo,
povos expulsos de suas terras,
mulheres, trabalhadoras, crianças
sofrendo com a violência do Estado.
Tudo muito brutal.
Tudo violento.
Tudo por um fio.
É um país inteiro sangrando.
É só povo segurando na mão de povo,
nas ondas de solidariedade
que também vão se esgotando.
Como tudo se esgota, por aqui,
na minha subjetividade.
A banalização do mal.
A naturalização da dor.
Do sofrimento.
Da morte.
Tudo por um fio —
numa dimens
ão que assusta
de tão natural.
Como se tudo na vida
tivesse se tornado
parte da mobília.
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