Maçã Podre...
Quando eu tinha 13 anos fui chamada pela diretora da escola
de “maçã podre”...Quando estava calor eu usava shorts e não era uma menina bem
vista, por usar tal vestimenta. Tantas vezes levei advertência, tantas outras fui obrigada à voltar pra casa,
sem assistir aula e com calor.
Algumas vezes eu ia pra casa mesmo, noutras eu ia pra bica e
me refrescava enquanto dava o horário de terminar a aula. Não! eu não estava
matando aula, minha aula já havia sido morta bem antes de eu estar na bica,
foram assassinadas quando não pude entrar na escola, a aula e a dignidade.
Por muito pouco não fui expulsa da escola, sob o argumento
da “maçã podre”...
Com o passar de poucos anos minhas vestimentas e meu corpo se
transformaram e ganharam a não-cor e o não-formato de alguém não-satisfeito,
com o mundo e com a vida.
Passei a usar roupas muito maiores do que meu pequeno corpo
aceitava. Às vezes sujas, outras, rasgadas. Rasguei também os cabelos, usando o
mínimo que eu poderia suportar na cabeça.
Ainda assim rasgada para com o mundo, dilacerada pelo
convívio com o “normal”, ainda assim eu desenvolvi um amor imenso pela leitura.
Amor esse que foi despertado por uma professora de Português. Ela era tão
detestada quanto eu na escola. Não pelas roupas ou a falta delas. Era negra,
mulher simples, quase acanhada! Mas ela me causava um fascínio tão grande, que
tudo que ela indicava eu lia. Eu queria o amor daquela mulher, daquela professora
que ninguém gostava...Nesse tempo eu já carregava vinho ao invés de suco na
minha lancheira.
Esta foi a escola que mais tempo eu permaneci, nunca soube
criar raízes, foram tantas escolas que não couberam todas no histórico escolar.
Mais de 8 escolas. Numa vida escolar em média de 11 a 12 anos, é bastante coisa.
Essas mudanças aconteciam por conta do trabalho do meu pai,
operário, operador de máquina de terraplenagem. Íamos à todos cantos que haviam
estradas para construir, São Paulo, Minas Gerais, Mato Grosso. Onde as empresas
iam construir estradas, a família toda ia.
Por isso nunca tive lugar... Nenhum lugar eu cabia, tampouco
cabia em mim. Nem no Mato Grosso, com um bando de crianças vizinhas tão
perdidas quanto eu, com seus pais operários-nômades, tanto quanto o meu.
Pelo mesmo motivo tive que aprender a me adaptar à todo e
qualquer lugar, mesmo sentindo que não era meu-lugar. E se fosse, poderia
acabar tudo, assim, no próximo mês...
Esse período morando no Pantanal Mato-grossense foi
inexplicavelmente um dos mais importantes e ricos da minha vida. Alí, fui
proibida de freqüentar a catequese, pois ainda não sabia ler. Me causou muita
frustração! Sempre eu tinha ouvido que deus castigava e que ele via tudo que eu
estava fazendo, etc e tal. Eu só queria conhecer esse cara, a catequese (ao
menos eu acreditava) seria a porta, seria o único meio de conhecer esse cara e
ver qual era a dele, se era mesmo tudo aquilo de medo que eu tinha, ou não...
Não foi possível, não pude freqüentar mesmo a tal da
catequese. Pensei comigo, vou aprender a ler e vou conhecer deus e ele vai
gostar de mim um dia. E depois que eu aprender a ler, ele não vai mais me
perseguir, nem ficar me olhando no banheiro, nem sabendo de tudo que eu penso...
Eu não sabia que existia uma idade pra freqüentar a tal da
catequese. No fim das contas, parti do Pantanal, somente com a lembrança das
cobras no caminho da escola, debaixo do sol forte;
Desisti definitivamente de deus assim que comecei a
desfrutar dos prazeres do meu corpo. Como poderia ser proibida tamanha sensação
que meu corpo poderia me dar, por ele, o tal deus? Definitivamente, aos 12 anos
eu só queria conhecer a aproveitar dos prazeres do meu corpo.
E assim segui, conhecendo meu corpo e deixando que outros e
outras o conhecessem também. Saboreando todas as formas de delícias que eu
podia suportar.
E a vida seguiu assim, fui aos poucos lendo o mundo, lendo
as pessoas e até hoje sigo assim, lendo o tempo todo...
Leio o que acontece à minha volta, lendo a cada um que eu
conheço, lendo para outras pessoas, ensinando outras pessoas (Não a ler), mas a
gostarem de ler. Sigo despertando paixões vida afora, sigo despertando o desejo
pela vida, não só pela leitura, mas pelo amor, pelo corpo, prelo prazer...Sigo
contaminando cada um que eu puder contaminar.
E que a contaminação não seja palavra excluída e que não
tenha um cunho negativo sempre...
Depende de com o quê
nos contaminamos!
Sim, eu devia ser uma maçã podre, desde aqueles tempos!
Contaminando outras maçãs, iguais ou diferentes de mim...à procura de um lugar,
onde pudesse existir, como maçã (podre ou não)ou como mulher, como pessoa, como
humano que encontra o seu lugar! Mesmo que esse lugar seja lugar nenhum.
Mesmo que esse lugar nunca exista! Não abandonemos o desejo
da busca! Avante maçãs podres!!