Quando eu tinha treze anos, fui chamada pela diretora da escola de “maçã podre”.
Era verão, e eu usava shorts.
Não era uma menina bem vista por isso — por mostrar as pernas.
Recebi tantas advertências, tantas vezes fui mandada de volta pra casa sem assistir aula, apenas por estar com calor.
Algumas vezes eu voltava mesmo; noutras, ia pra bica e me refrescava, esperando o horário de terminar a aula.
Não, eu não estava matando aula.
Minha aula já havia sido morta — assassinada junto com a minha dignidade, quando não pude entrar na escola.
Por muito pouco não fui expulsa, sob o argumento de ser a tal “maçã podre”.
Com o passar dos anos, minhas roupas e meu corpo mudaram.
Ganharam a não-cor e o não-formato de alguém insatisfeito com o mundo e com a vida.
Passei a usar roupas grandes demais, às vezes sujas, outras rasgadas.
Rasguei também os cabelos — deixei o mínimo que pude suportar na cabeça.
Mesmo rasgada pelo convívio com o “normal”,
desenvolvi um amor imenso pela leitura.
Amor despertado por uma professora de Português.
Ela era tão detestada quanto eu.
Não pelas roupas — mas por ser mulher, negra, simples.
E eu a amava.
Tudo o que ela indicava, eu lia.
Eu queria o amor daquela mulher que ninguém gostava.
Naquele tempo, eu já carregava vinho na lancheira em vez de suco.
Essa foi a escola em que mais tempo permaneci.
Nunca soube criar raízes.
Foram tantas escolas que não couberam todas no histórico.
Mais de oito.
As mudanças aconteciam por causa do trabalho do meu pai, operário de terraplenagem.
Íamos pra onde houvesse estrada pra construir: São Paulo, Minas, Mato Grosso.
Onde as máquinas iam, nós íamos junto.
Por isso, nunca tive lugar.
Nenhum lugar me cabia — tampouco eu cabia em mim.
Nem no Mato Grosso, entre as crianças vizinhas, tão nômades quanto eu.
Aprendi a me adaptar a todo e qualquer lugar, mesmo sem pertencer a nenhum.
E se por acaso aquele lugar fosse meu, logo deixaria de ser — no próximo mês, na próxima estrada.
O tempo no Pantanal foi um dos mais ricos da minha vida.
Ali, fui proibida de frequentar a catequese porque não sabia ler.
Senti frustração.
Sempre me disseram que Deus castigava, que via tudo que eu fazia.
Eu só queria conhecê-lo — saber se era verdade o medo que eu sentia.
A catequese seria a porta.
Mas não pude entrar.
Pensei: “Vou aprender a ler. E quando eu aprender, Deus vai gostar de mim. Vai parar de me perseguir, de me olhar no banheiro, de saber o que eu penso.”
Não sabia que existia idade certa pra catequese.
No fim, parti do Pantanal levando as lembranças das cobras no caminho da escola, sob o sol forte.
Desisti definitivamente de Deus assim que descobri o prazer do corpo.
Como poderia ser proibido algo tão bom?
Tão verdadeiro?
Aos doze anos, só queria conhecer e aproveitar o que o corpo podia me dar.
E assim segui:
conhecendo meu corpo,
deixando que outros e outras o conhecessem também,
saboreando todas as delícias que eu podia suportar.
A vida seguiu.
Fui lendo o mundo,
lendo as pessoas,
e sigo assim até hoje —
lendo o tempo todo.
Leio o que acontece à minha volta,
leio cada um que encontro,
leio para outras pessoas,
ensinando-as não a ler,
mas a gostar de ler.
Sigo despertando paixões,
sigo despertando desejo —
pela vida, pelo amor, pelo corpo, pelo prazer.
Sigo contaminando cada um que posso.
E que “contaminação” não seja palavra proibida.
Depende do que nos contamina.
Sim, eu devia ser mesmo uma maçã podre —
desde aquele tempo.
Contaminando outras maçãs,
iguais ou diferentes de mim,
à procura de um lugar onde se possa existir.
Como maçã — podre ou não.
Como mulher.
Como pessoa.
Como humana.
Mesmo que esse lugar seja lugar nenhum.
Mesmo que esse lugar nunca exista.
Mas que nunca abandonemos o desejo da busca.
Avante, maçãs podres! 🍎