quinta-feira, 17 de dezembro de 2015

Poeminha à Lacan

Escrever é delírio.
Tantos poetas já o disseram.

Deliro porque preciso suportar a vida.

A palavra é peça de xadrez no jogo da poesia:
ora representa o imaginário,
ora o simbólico.

Com ou sem o nome-do-pai,
elas se movem, se deslocam,
ou simplesmente se condensam —
feito metáfora e metonímia.

No real da vida,
só o desejo insustentável habita.

terça-feira, 15 de dezembro de 2015

Canto da sereia

Canto pra você
como quem lança rede no silêncio.
Canto de sereia —
em busca de um peito seguro
onde o som possa descansar.

Teu incenso desperta minha flor,
abre o corpo,
fica preso nas narinas
toda vez que ascendo.

Toma meu sumo,
meu suco de corpo,
minha fruta madura.

Come a Lótus —
úmida, orvalhada,
sagrada como o capim
que nasce no abandono.

Não sou santa.
Sou teia.
Sou veia.
E te devoro.

Intimidade não é língua.
É linguagem.
É metáfora.

E agora, me diz:
o que fará com o prato?
Vai lamber o resto
ou jogar o verso fora?

quarta-feira, 2 de dezembro de 2015

Sobre andar de moto (de carona)

Andar de moto de carona não é nada fácil.
Ora o piloto esquece que não está sozinho,
ora é a gente que se preocupa demais com o que vem pela frente.

Nos primeiros dias, foi cômico.
Em cima da 125, eu só pensava em não bater em nada.
Viajava o caminho inteiro torta e dura —
cabeça pra fora do eixo da moto,
tentando espiar o que vinha pela frente,
corpo torto de medo de me ajeitar e causar um acidente.

Lá ia eu:
troncha, com câimbras nas pernas,
bunda fora do banco
e cabeça quase fora da moto.

Hoje, mais acostumada, às vezes ainda acontece.
Se carrego uma mochila pesada e o piloto passa com tudo pela lombada,
tudo sai do lugar:
a mochila puxa pra um lado,
a bunda sai do centro,
as pernas travam.
Só a cabeça continua firme —
porque o medo, esse, nunca sai do lugar.

Ou você aprende a confiar no piloto,
ou vai de carona parecendo um saco de batatas com olhos arregalados.

Claro, há sempre a opção de pilotar a própria moto.
Mas, definitivamente, não é pra mim.

E assim seguimos —
sempre em busca do equilíbrio,
confiando no piloto
quando não é a gente quem pilota.

quinta-feira, 19 de novembro de 2015

NaCL(sal)

Há uma lenda antiga — ou talvez só uma sabedoria anônima — que diz que só conhecemos de verdade quem caminha ao nosso lado depois de dividir com essa pessoa os quilos de sal da vida.

Um dia, durante uma DR, cobrei do meu companheiro a falta de envolvimento com as coisas da casa.
Entre frases efusivas e algumas contundentes, disparei:

> “Você sabe se temos óleo em casa? Açúcar? Sal?
Sabe quanto temos de cada coisa?”



E fui seguindo, como quem mede amor em colheres e panelas.

Santiago, meu filho, ouvia tudo com atenção.
Tinha pouco mais de um ano, mas já entendia o essencial da conversa: a importância do sal.

Alguns dias depois, o pai o repreendeu por alguma traquinagem.
E ele, firme e indignado, devolveu sem pestanejar:

> “Pai, você compra sal?
Você nem compra sal e quer brigar comigo?”



Pois é.
O sal é mesmo o que sustenta as relações.
Dá gosto, dá limite, dá corpo.
Na vida familiar, sobretudo nas funções de mãe e pai,
é ele que impede o afeto de azedar.

segunda-feira, 16 de novembro de 2015

Voa...mulher!


O mar é assim —
um leva e traz constante.

Enquanto isso,
minha pele segue seca,
sedenta pelo teu olhar
— orvalhado, fértil.

A esperança embrutece.
Sente a fome-desejo deste corpo
que anseia por teus olhos
cheios de calor.

A bruteza risca a pele,
sulca os dias,
à espera dos beijos prometidos
que talvez nunca venham
molhar, matar, ou acalmar
essa angústia de amor
que ainda insiste.

Teu sorriso
é uma das poucas lembranças
que não secaram.
Mas, aos poucos,
também se esvai —
seca no imaginário,
dá novas formas
ao teu conteúdo.

Vai, mulher...
voa, beija-flor.

Não esperes mais por beijos
que não trazem amor.

Vai, mulher...
voa, beija-flor.
Não deixes o tempo
secar teus afetos.
Voa agora —
há outras flores
te esperando.

quarta-feira, 4 de novembro de 2015

Psicopatologias

O que antes era graça
já não seduz mais.

Como cantou Nando Reis em Cegos do Castelo:

> “Eu não enxergo mais o inferno que me atraiu.”



A paranoia —
que antes fazia rir, dançar,
ouvir Raul no último volume —
hoje não diverte.
Assusta.
No real da vida,
ela tem dentes.

Os delírios,
que tanto inspiraram a arte de escrever,
pela liberdade e pela febre da criação,
hoje são apenas sintoma.

A alucinação,
que um dia foi prazer —
doce, lúdica, colorida —
agora acovarda como fantasma de infância.
A mesma covardia de quem, criança,
se escondia sob o cobertor
pra não ver o que não era real.

Quebrada,
sem fraturas expostas —
fraturas mentais.
Elas doem,
latejam,
sangram,
sufocam.

Camus talvez tenha se aproximado
da palavra certa pra essa dor.
Em vez de depressão,
chamou de desespero.

E fez do suicídio
a questão filosófica mais urgente da humanidade.
(O Mito de Sísifo).

Freud, por sua vez,
disse que só se chega à análise
por dois caminhos:
o amor ou o trabalho.

Não sei como terminar.
Mas espero que termine bem.

(...)

O que antes era graça,
não encanta mais.

Como cantou Nando Reis em Cegos do Castelo:

> “Eu não enxergo mais o inferno que me atraiu.”



A paranoia que antes fazia rir
hoje assusta.
O delírio que antes criava
hoje consome.
A alucinação que antes libertava
hoje aprisiona.

Quebrada —
sem fraturas expostas —
as dores agora vivem no corpo.

Doem.
Latejam.
Sufocam.

Camus chamou de desespero.
Freud, talvez, de análise.
Eu, só de vida.
E ainda assim,
espero que termine bem.


Cigano

As areias da praia
trouxeram um cigano pra mim.

Cabelos hirsutos, desarmados —
tanto quanto o coração.

O olhar dele atravessou minhas entranhas.
Fiquei sem jeito.
Mas olhei de volta,
tentando decifrar o que diziam seus olhos.

O som do mar se confundia com sua voz,
e eu, já embriagada de desejo,
me apresentei nua —
sem resistência alguma
ao amor e ao sexo.

Foi uma tarde diferente.
Saí apenas pra caminhar,
tomar uma cerveja,
e o acaso — ou o destino —
me trouxe esse moço.

Bonito feito cavalo de raça,
riso fácil, conversa boa,
repleto de vida e vontade
pra me transbordar da rotina.

Fui sem medo.
Confiei no olhar, no sorriso
que pareciam dizer:

> “Não foi acaso, minha pequena.”



Os gestos dele —
entre carinho e amizade —
me encantaram.

Saí sem saber se fora sonho ou realidade.
A consciência latejava oxitocina e feromônio —
mistura exata pra deixar qualquer alma em êxtase.

O mago da palavra fez feliz a fada urbana.
E a história continua,
mesmo depois de uma semana.

Não vou contar o tempo,
nem os encontros.
Fico cá, pensando no tal moço —
cigano do amor,
sem paradeiro,
que vai beijando flor por flor.

Enquanto ele não chama,
preparo minha flor.
Pra quando ele vier beijar,
que venha —
cheio de amor.


terça-feira, 20 de outubro de 2015

Sobre a copa IIDidier Dogbá,um nome é muita coisa


Ontem, durante o jogo Japão x Costa do Marfim, aconteceu o inesperado.
O Japão dominava a partida e vencia por 1 a 0.
A Costa atacava sem parar — mas nada.
A força e a resistência estavam lá, visíveis em músculos esculpidos com precisão quase divina.
Mas não bastava.
Não bastava pra virar o jogo.

E então aconteceu o milagre.
Não foi tático, foi simbólico.

A virada começou quando um nome foi dito:
Didier Drogba.

O nome entrou em campo — e o jogo mudou de esfera.
Parecia que a realidade, de repente, obedecia ao desejo.

A torcida, antes tímida, virou a casaca sem culpa.
Gritava, delirava.
Não torcia mais só por um time —
torcia pelo mito.

A postura dos jogadores mudou também:
cabeças erguidas, passes firmes, olhos atentos ao companheiro.
O campo, antes espaço de força, virou território de fé.

Ontem, Drogba não foi convocado.
Foi evocado.

Como quando evocamos uma palavra na esperança de que o nosso desejo se realize.

E foi.

Enquanto via o jogo, lembrei de uma psicanalista que um dia me disse:

> “Um nome nunca é só isso.
Um nome já é muita coisa.”



Se é!

Durante a copa do mundo I

Na última quinta, adiantamos o ensaio da banda, aproveitando o feriado pra deixar o domingo livre.
Aqui em casa, todos tinham saído: os filhos mais velhos foram pra casa do pai, o companheiro aproveitou pra fazer hora extra, e eu fui trabalhar também — porque artista, sim, trabalha pra burro.
Fui com meu pequeno de quatro anos.

Na ida, pegamos o metrô — a linha vermelha — lotado de torcedores ingleses.
Felizes, barulhentos, batendo no teto do vagão, bebendo, gritando, naquela algazarra alegre de quem faz da torcida um carnaval.

Meu pequeno me olhava, intrigado.
— “Mãe, por que eles falam desse jeito?”
Expliquei:
— “É a língua deles. Eles falam inglês, moram em outro país.”
Um dos estrangeiros percebeu a curiosidade do menino, sorriu e passou a mão com carinho em seus cabelos.

Descemos em Santa Cecília.
Ensaio feito, tudo lindo.

Na volta, cruzamos com a torcida do Uruguai — ainda mais feliz que a da Inglaterra.
Voltavam do jogo com o peito estufado de vitória.
Usavam perucas azuis e brancas, bandeiras enroladas no corpo, riam, dançavam, saudavam todos ao redor.

Meu pequeno quis saber de novo:
— “Mãe, quem são eles?”
Respondi:
— “São uruguaios. Eles falam espanhol.”

Ele sorriu, deu tchauzinhos, e muitos retribuíram.
Até aí, tudo bem. Tudo normal.

Mas então um brasileiro, dentro do vagão, me chamou a atenção.
Olhou pra mim, pra viola nas costas, e gritou alto:
— “Quero ver se toca violão!”

Possivelmente era a primeira vez que esse homem andava de metrô.
E olha, espero que tenha gostado.
Mas percebi que, pra ele, artista não pega metrô.
Artista, pra ele, é outra coisa — alguém intocável, cercado de seguranças, distante do real.
A arte, na cabeça dele, deve morar em palcos caros e telas de TV, nunca num vagão apertado com cheiro de cerveja e humanidade.

Um outro passageiro, mais gentil, perguntou ao meu pequeno qual era o instrumento que ele carregava.
E ele, orgulhoso, respondeu:
— “É uma escaleta.”
O homem sorriu, olhou pra mim e perguntou:
— “E o seu, é violão?”
— “Não”, respondi. “É uma viola caipira.”
Ele sorriu de novo.

Hoje, um amigo escreveu nas redes:

> “Não há nada mais pacífico do que uma pessoa carregando um instrumento musical.”



E eu fiquei pensando: pacífico pra quem?

Espero sinceramente que pra todos nós.
Espero que o artista e a arte não sejam vistos como algo fora do real,
mas como parte do que somos —
em qualquer lugar, em qualquer língua,
em qualquer estação de metrô.

Que se respeite a arte não só nos gols da vida,
mas também nas derrotas, nas dores, nas lutas, nas angústias
e no gozo nosso de cada dia.

Preciso gritar gol!

Eu preciso gritar GOL!

Preciso gritar gol quando é Copa do Mundo
e vejo em campo a luta de tantos povos.

Preciso gritar gol
porque passo a semana inteira enterrada
nos problemas da comunidade —
gente que vive uma realidade dura,
tão dura quanto a minha.

Preciso gritar gol.
É meu momento de catarse.
E não é só o meu.

É o grito de tanta gente.
O grito de tantos discursos.
O grito do povo oprimido na favela —
e de outros mais.

É o grito dos discursantes do busão,
que às vezes, pra minha tristeza,
discursam como “coxinhas”.

E isso me assusta.
Porque não há nada mais triste
do que um discurso-coxinha
ecoando dentro do ônibus,
no beco da favela.

Ser coxinha hoje
não é mais demérito da classe média.
É uma contaminação.

E eu me pergunto:
o que leva essas pessoas a acreditarem na mídia?
Essa mídia frágil, televisiva, manipuladora —
que vende uma ideia de realidade
embalada em luzes e slogans.

Pode ser romantismo,
mas penso que se cada um refletisse sobre o que vive,
sobre o que passa dentro e fora de si,
as relações seriam outras.

Com menos preconceito,
menos medo,
menos rótulos —
e mais humanidade.

Porque até quando fala de preconceito,
a mídia tenta enfiar outro goela abaixo.
E a gente engole.
Todos nós.

Eu fico feliz
quando vejo um amigo gritar nas redes:

> Vai, Argélia!
Vai, Costa Rica!
Dale, Uruguai!
Vai, Costa do Marfim!
Gana!



Porque sei que estão dizendo muito mais do que isso.
Desejam muito mais do que gol.
Desejam justiça social.
Desejam igualdade.
Desejam respeito.
Desejam o fim da opressão.

É só por isso que eu grito GOL!

Primeiro dia de aula

Ainda trago muito claro na memória o meu primeiro dia de escola.
Era a primeira série.
O nome da professora era Ariane.

Eu observava, com um olhar tímido e curioso, meus futuros colegas e todo aquele novo mundo cheio de cores e barulhos.

Sobre as mesas, as lancheiras mais escalafobéticas que eu já tinha visto.
Estojos multicoloridos.
De dentro deles saíam lápis, borrachas, apontadores —
objetos pequenos, coloridos, mágicos.
Tudo me parecia um tesouro.

A certa altura, a professora começou a chamar os nomes dos alunos:

— Fulano de tal!
— Presente! — respondia o fulano.

E assim ela seguia, um por um.

Eu comecei a ficar angustiada.
A qualquer momento, podia chegar a minha vez.

E chegou.

— Rosana!

Uma, duas, três vezes ela chamou.
E eu, quieta, pensando comigo:

> “E agora? O que eu faço?”



Ela olhou pra sala e perguntou:

— Quem é Rosana?

E eu, sem muita alternativa, respondi:

— Sou eu!

— E por que você não diz ‘presente’? — ela perguntou.

E eu, com toda sinceridade do mundo:

— Porque eu não trouxe!

Na minha cabeça, todos aqueles objetos que as crianças traziam —
as lancheiras, os estojos, os lápis —
eram presentes pra professora.

Ela sorriu com doçura e me explicou o que realmente significava dizer “presente”.
Fiquei aliviada.
Aprendi.

E aprendi também que a vida é isso:
todo dia é um novo primeiro dia de aula.
Todo dia dá pra aprender algo —
uma palavra, uma música, um gesto,
ou encontrar um novo amigo.

A vida está aí,
cheia de encantamentos,
o tempo todo.

E eu só quis contar pra vocês. 🌷

segunda-feira, 19 de outubro de 2015

O episódio da máquina de lavar, a linguagem.

Após cinco anos funcionando em perfeito estado, minha máquina de lavar — comprada com uma vaquinha-à-prestação feita pela minha mãe, minha avó e meu pai — resolveu dar problema.

Há dois dias, me deparei com um cartão de visitas sobre o armário da cozinha, escrito:

> “Conserto de máquinas de lavar.”



Achei que fosse de algum conhecido do meu companheiro, ou talvez alguém tivesse deixado o cartão sob a porta e outro alguém, gentilmente, o colocara sobre o armário.

Resolvi não jogar fora — ainda.
Guardei num cantinho.
Aquele cantinho que, de pouco em pouco, toma conta do armário em pouquíssimo tempo.
Era só questão de tempo o cartão ir pro lixo...

Acontece que hoje, dois dias depois de encontrar o tal cartão, a máquina decidiu não funcionar.

Coloquei a roupa da semana toda — nesses tempos difíceis a gente só lava quando é estritamente necessário.
Coloquei sabão, amaciante, tudo certinho.
Liguei.
E nada!

A luz acendia, mas a água não entrava.
Fiz de tudo: abri e fechei mil vezes, dei umas porradas, tirei da tomada, religuei a torneira... nada.

Foi quando me lembrei do tal cartão misterioso — e aí bateu a paranoia!
Comecei a confabular que aquele cartão era de um sujeito que tinha entrado em casa, sabotado minha máquina e deixado o cartão como provocação.
Olha o nível da nóia!

Respirei fundo, recuperei um pouco de sanidade e decidi ligar para o “sabotador de máquinas de lavar alheias”.

— Sr. Fulano? Encontrei seu cartão aqui em casa, não sei como ele veio parar aqui... enfim, minha máquina quebrou. Está assim, assim, assado.

Ele respondeu, calmo:
— Hum... entendi. Mas tá saindo água?

— Não! A luz acende, mas a água não vem pra máquina.

— Hummm, entendi... me passa seu endereço.

Achei que ele fosse vir só no dia seguinte, ou na segunda-feira — tipo os técnicos de computador, que vêm só quando podem.

Mas não deu cinco minutos e o homem já estava na porta.
Aqui é quebrada — e na quebrada é assim!
(Isso, claro, não vale pros técnicos de computador.)

Ele entrou, olhou a máquina cheia de roupa, e eu — agoniada — atrás dele, tentando entender o problema quase junto com ele.
O desespero era grande.
Mas grande mesmo!

Na minha cabeça, passava um filme: eu lavando roupa de cinco pessoas na mão, sabão até o cotovelo, a vida desabando.
Era quase mais enlouquecedor que a própria paranoia.

Então o homem resolveu arrastar a máquina.
E eu, na maior inocência — misturada com desespero — soltei, sem pensar:

> — Moço, precisa tirar a roupa? Se precisar, eu tiro!



Chorei de rir por dentro.
Com a minha bobiça de linguagem.

quinta-feira, 15 de outubro de 2015

Poema engavetado

Fome de quê
guardam teus úmidos lábios morenos?

Que vontades tua pele carrega
sob essa camisa?

No teu corpo
faço língua
meu desejo-fome.

O olhar que mira —
como quem mira estrelas —
desperta-me a sede.

Quero chuva.



sábado, 27 de junho de 2015

Maçãs podres, avante!

Quando eu tinha treze anos, fui chamada pela diretora da escola de “maçã podre”.
Era verão, e eu usava shorts.
Não era uma menina bem vista por isso — por mostrar as pernas.

Recebi tantas advertências, tantas vezes fui mandada de volta pra casa sem assistir aula, apenas por estar com calor.
Algumas vezes eu voltava mesmo; noutras, ia pra bica e me refrescava, esperando o horário de terminar a aula.

Não, eu não estava matando aula.
Minha aula já havia sido morta — assassinada junto com a minha dignidade, quando não pude entrar na escola.

Por muito pouco não fui expulsa, sob o argumento de ser a tal “maçã podre”.

Com o passar dos anos, minhas roupas e meu corpo mudaram.
Ganharam a não-cor e o não-formato de alguém insatisfeito com o mundo e com a vida.
Passei a usar roupas grandes demais, às vezes sujas, outras rasgadas.
Rasguei também os cabelos — deixei o mínimo que pude suportar na cabeça.

Mesmo rasgada pelo convívio com o “normal”,
desenvolvi um amor imenso pela leitura.
Amor despertado por uma professora de Português.
Ela era tão detestada quanto eu.
Não pelas roupas — mas por ser mulher, negra, simples.

E eu a amava.
Tudo o que ela indicava, eu lia.
Eu queria o amor daquela mulher que ninguém gostava.
Naquele tempo, eu já carregava vinho na lancheira em vez de suco.

Essa foi a escola em que mais tempo permaneci.
Nunca soube criar raízes.
Foram tantas escolas que não couberam todas no histórico.
Mais de oito.

As mudanças aconteciam por causa do trabalho do meu pai, operário de terraplenagem.
Íamos pra onde houvesse estrada pra construir: São Paulo, Minas, Mato Grosso.
Onde as máquinas iam, nós íamos junto.

Por isso, nunca tive lugar.
Nenhum lugar me cabia — tampouco eu cabia em mim.
Nem no Mato Grosso, entre as crianças vizinhas, tão nômades quanto eu.

Aprendi a me adaptar a todo e qualquer lugar, mesmo sem pertencer a nenhum.
E se por acaso aquele lugar fosse meu, logo deixaria de ser — no próximo mês, na próxima estrada.

O tempo no Pantanal foi um dos mais ricos da minha vida.
Ali, fui proibida de frequentar a catequese porque não sabia ler.
Senti frustração.
Sempre me disseram que Deus castigava, que via tudo que eu fazia.
Eu só queria conhecê-lo — saber se era verdade o medo que eu sentia.
A catequese seria a porta.

Mas não pude entrar.
Pensei: “Vou aprender a ler. E quando eu aprender, Deus vai gostar de mim. Vai parar de me perseguir, de me olhar no banheiro, de saber o que eu penso.”

Não sabia que existia idade certa pra catequese.
No fim, parti do Pantanal levando as lembranças das cobras no caminho da escola, sob o sol forte.

Desisti definitivamente de Deus assim que descobri o prazer do corpo.
Como poderia ser proibido algo tão bom?
Tão verdadeiro?
Aos doze anos, só queria conhecer e aproveitar o que o corpo podia me dar.

E assim segui:
conhecendo meu corpo,
deixando que outros e outras o conhecessem também,
saboreando todas as delícias que eu podia suportar.

A vida seguiu.
Fui lendo o mundo,
lendo as pessoas,
e sigo assim até hoje —
lendo o tempo todo.

Leio o que acontece à minha volta,
leio cada um que encontro,
leio para outras pessoas,
ensinando-as não a ler,
mas a gostar de ler.

Sigo despertando paixões,
sigo despertando desejo —
pela vida, pelo amor, pelo corpo, pelo prazer.

Sigo contaminando cada um que posso.

E que “contaminação” não seja palavra proibida.
Depende do que nos contamina.

Sim, eu devia ser mesmo uma maçã podre —
desde aquele tempo.

Contaminando outras maçãs,
iguais ou diferentes de mim,
à procura de um lugar onde se possa existir.

Como maçã — podre ou não.
Como mulher.
Como pessoa.
Como humana.

Mesmo que esse lugar seja lugar nenhum.
Mesmo que esse lugar nunca exista.

Mas que nunca abandonemos o desejo da busca.

Avante, maçãs podres! 🍎

Orquídeas...

Ela chegou aqui de forma diferente das outras.
Foi encontrada no lixo — suja, abandonada, deixada na lixeira quando já não tinha mais a função de ser bela.

Acontece que eu a reconheci.
E, inesperadamente, a resgatei.

Reconheci, nela, que sempre é possível nascer, renascer e — por que não? — florescer.

Disseram-me que, todo ano, ela brota, reproduz, floresce...
Não sei bem o nome que se dá quando se trata de uma figura tão distinta.

O que sei é que, depois que ela chegou, meus dias nunca mais foram os mesmos.

Passei a habitar esta casa como quem habita uma estação de trem.
Alguém já viu alguém morar numa estação de trem?
Eu nunca vi.
Mas vivi como se fosse essa pessoa —
todos os dias esperando o destino, o endereço certo pra mim,
o lugar onde eu pudesse, enfim, deixar descansar a angústia da espera.

Uma espera que eu esperava nela, na Outra — e não em mim.

A dinâmica desse desejo contagiou todos aqui.
Algumas vezes ouvi:

> “E aí, mãe, nada?”
“Ainda não desistiu dela?”



E eu seguia olhando pra ela, sem entender bem o porquê — cheia de desejo, e cheia de espera.

À essa altura, nossa relação já não era segredo pra ninguém nesta casa-estação.
Havia esperança no enredo,
e só por isso ela não foi abandonada.

O que sustentou essa relação não foi apenas o desejo —
foi a certeza silenciosa de que havia vida ali.

Mesmo quando resolvi desistir,
mesmo quando deixei de alimentá-la por medo de sufocar,
ela seguiu lá.
E eu segui aqui.

Meses depois de eu ter parado de contemplá-la,
meses depois de quase desistir —
ela reapareceu.

Magnífica.
Con(vida).
De cor diferente.

Floresceu.

Não o que eu esperava —
porque o que eu esperava era desejo meu.
O que surgiu foi o desejo dela.

E dos galhos tortos e semi-secos nasceu um galho novo,
inesperado, real, lindo —
de um verde inimaginável.

Eu não desisti dela.
E, ao que parece...
ela não desistiu de mim.

Orquídea véia! É nóis. 🌸

A transa porvir...


O imaginário se alimenta desse desejo
como quem lambe, delicadamente,
uma trufa de chocolate derretida.

Lambuza-se na sensação
do gozo incomensurável —
na troca efêmera
de cheiros, sabores, calor e umidades.

A medida da tua dureza
nas minhas profundezas.

A ânsia pelo encaixe perfeito,
profundo,
preciso.

O coito interrompido —
barrado, cortado,
não gozado,
não explodido,
não ejaculado —
segue latente,
latindo,
suspenso naquele minuto exato
entre o real e a fantasia.

O manifesto está nas palavras.

Freud disse:

> “O sonho é a realização dos desejos.”



Será mesmo?

Tenho sonhado o mesmo real.
Meu gozo habita nos quereres.
E não o devo a ninguém.

Quer cantar de galo?

Quer cantar de galo?
Vá cantar no seu terreiro.

Porque eu sou mulher-dama,
rainha do tabuleiro!

O Beco

  Ah...
se te pego no beco!

Te decoro inteiro com a boca,
faço mapa da tua pele,
rastro,
suspiro,
gota.

No beco, a boca vai ser pouca —
e a ânsia, louca.

Menino malvado,
escorregadio...
se te pego no beco,
te faço vadio.

Te conto em segredos
que dormem escondidos,
te conto em sussurros:
ora suaves,
ora agressivos,
ora suspense...

silêncio sombrio.

Lua no mar

Lua no mar,
eu — na tua.

Corpo no mar,
pele nua.

Lua na pele,
molhada, nua.
Cheiro de mar
na pele tua.

Língua na lua
do céu da boca.
Boca de mar
na pele tua.

Gosto de lua,
molhada, nua.
Na pele de mar,
na boca tua.

Cheiro de nua,
brilhando de mar,
debaixo da lua.

Pele na pele,
boca molhada,
no pêlo, na pele.

Hoje sou tua...
mas sou —
como a lua.

Mulher Maluca

Vida de mulher maluca
Doida varrida,
forte, aguerrida,
verdadeira mulher da vida!

Enquanto prepara o jantar,
põe o filho pra banhar
e a máquina pra lavar.

Num momento de tormento,
quase não me atento
ao feijão — prestes a queimar!

Em pleno desespero,
abro a panela correndo
e começo a berrar:

> — Venham cá, meninos!
Vejam só que confusão!
Me digam vocês três,
onde foi parar o feijão?!



Entre risos e desatinos,
chega o mais pequenininho,
com expressão de diversão,
e me diz — todo sorrindo,
cheio de sensatez:

> — Pro jantar de hoje, mãe...
vai faltar só lucidez!

E feijão...

Sobre o sábado de aleluia

Não tenho religião.
Tampouco acredito em nada... nem em mim.

Passei muito tempo, quando criança, temendo.
Temendo e temendo, sem saber bem o quê.

Na sexta-feira santa, lá em casa,
não se penteava nem os cabelos.
Coisas simples — escovar os dentes, varrer a casa —
eram vistas como profanação.

Palavrão então... nem pensar!
(“Sé loco, tio!” — como dizem hoje em dia).

Ninguém podia fazer nada além de respirar e chorar o dia todo.
E eu achava tudo muito triste,
mas parecia que tinha que ser assim.
Nunca entendi bem o porquê.
Tipo Chicó, em O Auto da Compadecida:

> “Só sei que foi assim.”



Passava a sexta nessa agonia.
Mas o pior era o sábado.
Sábado de Aleluia.

Quando eu ouvia esse nome, um nó me subia no peito.
Dava, porque hoje já não dá mais.

Sábado de Aleluia era o dia da libertação —
mas não da nossa.

Era a redenção do meu pai,
que passava a sexta em silêncio,
sem brigar, sem gritar,
segurando a raiva o dia inteiro.
No sábado, libertava tudo.

E o que ele libertava tinha forma de cinta, de chinelo, de varinha.
Era o dia de “tirar a Aleluia”.
E o coro comia.

Sem motivo.
Sem causa.
Era assim, e pronto.

Eu morria de medo de passar perto do meu pai.

Durante muito tempo achei que ele era doido.
Só mais tarde, já adulta,
descobri num livro de Mario Vargas Llosa
(Pantaleão e as Visitadoras)
que, no Peru, havia algo parecido —
um costume de bater nas crianças no sábado de Aleluia
pra espantar os maus espíritos.

Não sei o que meu pai queria com aquilo.
Não sei se acreditava nisso.
Mas sei que não era comigo.
E se era...

Sinto muito, papai.
Não funcionou.

Terenas

Filha de operário,
vida de viajante.

Na infância,
pequena nômade —
de muitas paragens,
de tantas moradas,
de inúmeros amigos.

Poucos deixaram tanta saudade
quanto os Terenas mirins.

Saudade do quintal,
tão perto do Pantanal...

O caminho da escola era longo,
o sol rachava a moringa,
que logo se refrescava
à margem do rio Miranda.

Correr com índio e macaco
era tudo que eu queria.
Era tudo que eu esperava.

Quando chegava tal dia,
juntava os amigos da vila
e o mato atravessava
até que a aldeia alcançava.

Catar coquinho, chupar manga —
era a maior alegria.
Brincadeira de criança
só vale se tem fantasia.

Às vezes a gente fugia,
fugia o dia inteiro,
em busca de um paradeiro
que a nós transformaria.

Quem chegasse lá primeiro,
onde nasce o colorido,
recebia seu prêmio:
menina virava menino,
e guri virava guria.

O desejo não engana.

E pensando na mudança,
virar menino não era
o que a mim me bastaria.

Mas eu tinha esperança,
na ideia de criança,
que completando a andança...

Um índio eu viraria.




O dentista alienista

— Abra a boca!
— Não posso... tenho uma bala.

— Cuspa e abra!
— Não posso, está alojada.

— Abra e veremos...
Sua boca não está escovada.

— Como poderia?
Tenho uma bala alojada!
Não é doce — é dor.
Não derrete.
Fica.

— Para você, só há uma solução.
Não importa se é bala de chumbo ou de salão.
O que dói não interessa, o que importa é a correção.

— Mas eu só sinto o gosto metálico da vida...

— Silêncio!
No seu caso, não há remédio.
Bom seria a escovação,
mas, na sua condição,
devido à bala,
por sua imaginação,
você está condenado.

— Condenado a quê?
— A ser tratado.
A ser trancado.
Guardado.
Trancafiado.

Você não tem dentes, tem delírios.
Não tem dor, tem diagnóstico.
Não tem fome, tem sintoma.

Eu decreto, de hoje em diante:
seu caso é de internação.

— E a bala?
— A bala fica.
É o que mantém você falando.