quinta-feira, 19 de novembro de 2015

NaCL(sal)

Há uma lenda antiga — ou talvez só uma sabedoria anônima — que diz que só conhecemos de verdade quem caminha ao nosso lado depois de dividir com essa pessoa os quilos de sal da vida.

Um dia, durante uma DR, cobrei do meu companheiro a falta de envolvimento com as coisas da casa.
Entre frases efusivas e algumas contundentes, disparei:

> “Você sabe se temos óleo em casa? Açúcar? Sal?
Sabe quanto temos de cada coisa?”



E fui seguindo, como quem mede amor em colheres e panelas.

Santiago, meu filho, ouvia tudo com atenção.
Tinha pouco mais de um ano, mas já entendia o essencial da conversa: a importância do sal.

Alguns dias depois, o pai o repreendeu por alguma traquinagem.
E ele, firme e indignado, devolveu sem pestanejar:

> “Pai, você compra sal?
Você nem compra sal e quer brigar comigo?”



Pois é.
O sal é mesmo o que sustenta as relações.
Dá gosto, dá limite, dá corpo.
Na vida familiar, sobretudo nas funções de mãe e pai,
é ele que impede o afeto de azedar.

segunda-feira, 16 de novembro de 2015

Voa...mulher!


O mar é assim —
um leva e traz constante.

Enquanto isso,
minha pele segue seca,
sedenta pelo teu olhar
— orvalhado, fértil.

A esperança embrutece.
Sente a fome-desejo deste corpo
que anseia por teus olhos
cheios de calor.

A bruteza risca a pele,
sulca os dias,
à espera dos beijos prometidos
que talvez nunca venham
molhar, matar, ou acalmar
essa angústia de amor
que ainda insiste.

Teu sorriso
é uma das poucas lembranças
que não secaram.
Mas, aos poucos,
também se esvai —
seca no imaginário,
dá novas formas
ao teu conteúdo.

Vai, mulher...
voa, beija-flor.

Não esperes mais por beijos
que não trazem amor.

Vai, mulher...
voa, beija-flor.
Não deixes o tempo
secar teus afetos.
Voa agora —
há outras flores
te esperando.

quarta-feira, 4 de novembro de 2015

Psicopatologias

O que antes era graça
já não seduz mais.

Como cantou Nando Reis em Cegos do Castelo:

> “Eu não enxergo mais o inferno que me atraiu.”



A paranoia —
que antes fazia rir, dançar,
ouvir Raul no último volume —
hoje não diverte.
Assusta.
No real da vida,
ela tem dentes.

Os delírios,
que tanto inspiraram a arte de escrever,
pela liberdade e pela febre da criação,
hoje são apenas sintoma.

A alucinação,
que um dia foi prazer —
doce, lúdica, colorida —
agora acovarda como fantasma de infância.
A mesma covardia de quem, criança,
se escondia sob o cobertor
pra não ver o que não era real.

Quebrada,
sem fraturas expostas —
fraturas mentais.
Elas doem,
latejam,
sangram,
sufocam.

Camus talvez tenha se aproximado
da palavra certa pra essa dor.
Em vez de depressão,
chamou de desespero.

E fez do suicídio
a questão filosófica mais urgente da humanidade.
(O Mito de Sísifo).

Freud, por sua vez,
disse que só se chega à análise
por dois caminhos:
o amor ou o trabalho.

Não sei como terminar.
Mas espero que termine bem.

(...)

O que antes era graça,
não encanta mais.

Como cantou Nando Reis em Cegos do Castelo:

> “Eu não enxergo mais o inferno que me atraiu.”



A paranoia que antes fazia rir
hoje assusta.
O delírio que antes criava
hoje consome.
A alucinação que antes libertava
hoje aprisiona.

Quebrada —
sem fraturas expostas —
as dores agora vivem no corpo.

Doem.
Latejam.
Sufocam.

Camus chamou de desespero.
Freud, talvez, de análise.
Eu, só de vida.
E ainda assim,
espero que termine bem.


Cigano

As areias da praia
trouxeram um cigano pra mim.

Cabelos hirsutos, desarmados —
tanto quanto o coração.

O olhar dele atravessou minhas entranhas.
Fiquei sem jeito.
Mas olhei de volta,
tentando decifrar o que diziam seus olhos.

O som do mar se confundia com sua voz,
e eu, já embriagada de desejo,
me apresentei nua —
sem resistência alguma
ao amor e ao sexo.

Foi uma tarde diferente.
Saí apenas pra caminhar,
tomar uma cerveja,
e o acaso — ou o destino —
me trouxe esse moço.

Bonito feito cavalo de raça,
riso fácil, conversa boa,
repleto de vida e vontade
pra me transbordar da rotina.

Fui sem medo.
Confiei no olhar, no sorriso
que pareciam dizer:

> “Não foi acaso, minha pequena.”



Os gestos dele —
entre carinho e amizade —
me encantaram.

Saí sem saber se fora sonho ou realidade.
A consciência latejava oxitocina e feromônio —
mistura exata pra deixar qualquer alma em êxtase.

O mago da palavra fez feliz a fada urbana.
E a história continua,
mesmo depois de uma semana.

Não vou contar o tempo,
nem os encontros.
Fico cá, pensando no tal moço —
cigano do amor,
sem paradeiro,
que vai beijando flor por flor.

Enquanto ele não chama,
preparo minha flor.
Pra quando ele vier beijar,
que venha —
cheio de amor.