"Dizem que os cachorros nos levarão água na cuia de suas cabeças quando morrermos".
Naquela tarde, se eu pudesse, ao invés de enterrar o cão envenenado, teria enterrado a mim mesma, para não sentir aquela dor que se sente quando a humilhação atinge os limites da alma.
Por circunstâncias da vida e do crescimento urbano fui desapropriada da minha antiga habitação. A casa era muito simples na construção, porém muito farta em horta, animais, frutas e até peixes, não só para o consumo, mas para fortalecer a economia da minha pequena família.
Dois dos meus filhos, desde muito pequenos deram os primeiros passos ali, naquela singela antiga habitação. Naquela casa habitávamos nós, os moradores e a alegria da liberdade para a criação e desenvolvimento das crianças, que corriam soltas pela rua e cresciam tão livres quanto os pés de hortelã rasteiros pelo chão. E para meu espanto, aprenderam também a nadar, muito antes da alfabetização, já que o pequeno quintal era um trecho da margem de uma imensa represa.
O deslocamento não foi nada simples. Mudança brusca de lugar no espaço físico e subjetivo.
Foram quatro anos de espera até que a nova habitação ficasse pronta para me receber com minha pequena família.
Meu terceiro filho chegou ao mundo já na nova habitação. Havia algum conforto, mas nada comparado à liberdade da antiga casinha singela. Na casa nova havia luz, mas não o calor do sol; havia espaço, mas não encontrava-se "jeito" ali...
Corre o tempo...
Passada a adaptação, na casa que não fora planejada por mim, na vida novamente assentada, entre deslocamentos e puerpério, precisei trabalhar...e muito!
Aceitei prontamente o trabalho de faxineira nesse condomínio dos novos habitantes, tão retirantes e deslocados quanto eu, de suas, de nossas vidas acostumadas.
Ali, suportei misérias inimagináveis em troca desse trabalho.
Por mais que eu limpasse e limpasse e limpasse, com cloro, desinfetante tutti-frutti, talco, violeta, jasmim, eucalipto, etc. o cheiro da indecência nunca saía, sempre lá, impregnado embaixo das escadas dos prédios, marcando a falta de educação, respeito, ética e tudo aquilo que se tem em mente para tornar minimamente possível mínimo a convivência em grupo, em sociedade, enfim, a convivência em um condomínio.
O Real tem dessas e as pessoas ainda desacostumadas de sua nova condição deram de fazer suas necessidades embaixo dessas escadas.
Com o tempo, descobri quem cagava. Quando se aperfeiçoa em merda, a bosta fica tão íntima que passa-se a reconhecer e diferenciar bosta de criança, de adulto, de cachorro e dos bêbados também.
Esses últimos têm um padrão diferente de cagar...Quando a bosta não está nos lugares mais improváveis é porque ficou nas calças mesmo. Como pude presenciar algumas vezes. Mas se não estão nas calças ou nos lugares improváveis, não se iludam, jamais estiveram no cagatório embaixo das escadas. Os bêbados são genuínos, cagam onde mais lhe apetecem, mas cagam sempre com dignidade! A si e aos outros.
Pois bem. sabendo quem cagava, fui ter com eles.
A pouca vergonha parava por uns dias, mas voltava ainda pior...tantas vezes na forma líquida, numa amálgama de pirraça, merda e urina.
Sim, a cuia do título ainda não entrou na história. Precisei preparar vocês para o pior.
Nada disso: cagatório, pirraça, xixi, etc e tal me deixou tão desassistida da sorte quanto a morte do cachorro envenenado.
Muitos cachorros foram abandonados pelos novos moradores deslocados de suas antigas casas e vidas para o condomínios Dos Retirantes Confusos.
E se não tinham escrúpulos com as próprias necessidades fisiológicas, quem diria com um animal que não puderam levar para os apartamentos.
Então a solução foi tão esdrúxula quanto os novos comportamentos apresentados pelos novos moradores do condomínio Dos Retirantes Confusos.
Envenenaram o animal e este morreu aos pés do muro frio, do lado de dentro, para que todos pudessem assistir à barbaridade de que estavam sendo capazes.
Todos passavam e olhavam, mas somente quando o fedor de carniça apodrecendo tornou-se insuportável foi que Doma Matilde (síndica e chefe) me chamou, afinal, eu era a responsável pela "limpeza".
Eu, a especialista em merda naquele lugar, não fui capaz de descobrir quem envenenou o cão.
Não!
Mas esse foi o dia fatídico. Dona Matilde me ordenou que enterrasse os restos mortais do cão.
E eu pequena e franzina em meus 50 kg de carne e ossos, carreguei o cão e comecei a cavar sua cova. Para além dos muros Do Condomínio Dos Retirantes Confusos.
Carreguei tudo, calada. O cão, a pá, a enxada e o ódio que sentia de Dona Matilde.
Enquanto três ou quatro pessoas assistiam à cena, desacreditando, porém gozando silenciosamente da situação, em virtude de suas pequenas perversões, eu cavava, cabisbaixa.
Após carpir a grama e terra superficiais, meti a pá no pequeno buraco e segui cavando até que o buraco aconchegasse o corpo do cão.
A tarefa passou a ficar inviável depois de uns 30 ou 40 minutos cavando, sem sucesso de grande dilatação do buraco e com platéia, sobretudo.
Enfim, esgotada de cansaço, calor de 40° e humilhação diante dessa cena bizarra, dilatei o buraco do meu peito e à plenos pulmões eu berrei:
- Chega! Não consigo mais cavar!
E a pequena platéia, embriagada, junto com Dona Matilde, decretou:
- Pegue uns três sacos de lixo e jogue na lixeira então.
Eu, exaurida, saturada em suor e lágrimas ressequidas pelo sol, pelo horror da cena absurda no real e no meu interior, muito mais por ser moradora do mesmo condomínio que o cão e os que comandavam o enterro, assenti com a cabeça, num gesto positivo e silencioso e o olhar perdido na tristeza e desespero de quem observou de perto por alguns minutos o inferno e esteve de volta pra contar.
Obedeci! Ressentida, abalada. Meti o cão nos sacos e coloquei na lixeira.
E todos voltaram pras suas vidas e pras suas casas.
Menos eu!
Não fuim a mesma nunca mais...
Naquele dia uma parte de mim foi junto com o cão pro lixo.